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Vagabundo não é fácil


Não importa a data, a ocasião, o evento. Seja com a família reunida no Natal, num encontro de casais, um esbarrão acidental no centro, invariavelmente, esse meu primo sempre me pedia para que eu relembrasse uma tal música da dor de dente. Se na ocasião houvesse um violão, a título de desafio, o estimulo era maior; além de lembrar a letra, era necessário também tocá-la.

De modo que eu passara em branco a cada encontro desses e seu subsequente desafio. E o tempo, esse arlequim servidor de dois amos, também tratou de apagar da memória de meu primo praticamente tudo da canção, ao ponto que apenas uma única coisa restasse.

“Só lembro de uma coisa, a música falava de uma dor de dente.”

Então, tratava-se de uma música irreverente, talvez um samba ou uma bossa descontraída, enfim.

Mas, sozinho, a missão de relembrar tal canção já estava se tornando um estorvo.

“Meu amor, você lembra de alguma canção que fale sobre dor de dente?”

Nada.

Na rede, deitado à tardinha, tomando café ou cerveja, nada, nada, absolutamente nada. Forçando acordes e uma letra mal e mal inventada, eu tentava forjar uma canção que me preenchesse aquele lapso de memória.

“Ah, essa dor de dente...”

Absolutamente inútil.

Hoje é domingo de uma semana qualquer e cá estou na rede, tomando uma cerveja gelada, vendo a vida passar como quem choca um ovo. Às vezes, desistir pode ser a melhor solução e eu não vou mais me inquietar por não lembrar dessa música. Considero findo esse desafio bobo que impus a mim mesmo, forçar a memória a lembrar de algo irrelevante.

Da varanda vejo Renatinho passar. Vem caminhando pela rua de pedra tosca como se a rua fosse sua. Na verdade, os carros e motos que se deem o trabalho de desviar dele, e de fato, todos desviam. Anda com um radinho de pilha colado no ouvido, na outra, um cigarro aceso e balbucia palavras indistintas ou consigo mesmo ou com a voz do rádio.

Logo depois de atravessar a ponte do trem, Renatinho para como se não lembrasse para onde vai de tão absorto na voz do rádio. Olha os caminhos e dá para dizer que ele está calculando o seu destino. Sua memória também não é das melhores.

Poucas foram as vezes que troquei palavra com ele. Tentei entabular alguma conversa sobre futebol, mas a fala desconexa e sua dicção prejudicada não me ajudaram a entender afinal qual era o time para o qual torcia.

Ali está, um homem nos seus quarenta anos, da pele marcada pelo sol, de bermuda e blusa do Botafogo, andando a esmo acompanhando de seu radinho de pilha e cigarro. No entanto, o homem também tem suas obrigações.

Ocasionalmente, mesmo numa cidade de interior, alguns eventos pedem a presença da banda municipal. Nesse dia, a banda acompanhava o cortejo iniciado da casa bem em frente à minha. À frente, o caixão, coroa de flores, logo atrás algumas pessoas com castiçais, velas, umas vinte pessoas e a banda municipal. E estava lá Renatinho na parte percussiva, tocando pratos de ataque, que os mais antigos chamavam címbalos.

A marcha fúnebre, ao mesmo tempo, irmanava aquelas pessoas que seguiam os últimos passos da pessoa a ser enterrada e anunciava aos desavisados, que um filho, uma filha querida estava sendo levada até o cemitério para o sepultamento. A banda acompanhava o cortejo ou de um filho muito querido da cidade, ou quando algum detalhe trágico envolvia a pessoa em questão.

“Meu amor, você sabe quem que morreu?”

“Você não soube? Sabe aquele rapaz que dizem ser envolvido com tráfico? Pois é, dizem que ele e esposa dele estavam no posto São Pedro abastecendo o carro ontem à noite, aí eles estavam com a filhinha no banco detrás, aí ele falou ‘bota 50 de gasolina comum’, aí o frentista foi botar gasolina, aí, você acredita?, encostou uma moto e deu dois tiros no carro. Graças a deus que não pegou na criança, mas um dos tiros pegou na cabeça da mulher dele que morreu na hora, aí...”

De fato, logo à frente, estava um homem, visivelmente abalado com uma garotinha nos braços. Acerto de contas, provavelmente. Trágico.

A marca fúnebre seguia compassada pelos toques precisos do bumbo e dos pratos de Renatinho. O tempo de cada toque marcava praticamente cada uma das estrofes do painossoqueestaisnocéu entoado pelos mais velhos, amigos, vizinhos, gente que se compadece só de ver que um igual morreu.

Isso me faz lembrar de minha aversão por celebrações e ambientes onde a morte é ruminada, lentamente mastigada e digerida até a última lágrima. Embora, na verdade, muitas pessoas se sintam bem mais à vontade que eu nesses ambientes. Tenho um amigo que adora cemitérios, compra pipoca, refrigerante e caminha à tardinha entre as lápides. Escolhe um banco, senta e aprecia a paz ao redor.

Com Renatinho é a mesma coisa. Não tem uma só pessoa que desconheça esse seu hábito. Agora então, caminhava duplamente feliz para o cemitério. De farda, pano passado, marcava o ritmo do cortejo com seus pratos, e, de quebra, ia para o canto onde mais se sentia feliz.

Sua mãe dizia que, especialmente aos domingos, quando ele sumia, era certo encontrá-lo no cemitério, andando entre as lápides, relembrando pelo nome inscrito os detalhes, as preferências, os laços familiares daquelas pessoas que ele conhecia, e de outras que jamais conhecera. Para isso, Renatinho inventava detalhes, preferências e laços familiares.

“Essa aqui é a Dona Nilzinha. Era uma senhora muito boa, tinha dois gatos, um preto, outro branco, e toda vez que eu passava lá ela me dava uma xícara de doce de mamão com coco ralado ou cinco reais.”

Embora terna a memória e tão vívida, era preciso Renatinho ter nascido pelo menos uns vinte anos antes para que ela tivesse acontecido de fato. Quem me narrou essa cena achou um tanto quanto doentio, mas eu mesmo achei notável. Na falta de memórias, ele as inventava.

Da mesma forma que ia sozinho ao cemitério, também acompanha outros cortejo, fosse como membro da banda municipal, fosse como apenas mais um a carpidar aquele irmão, muito provavelmente desconhecido dele.

Decidi acompanhar também o cortejo, mesmo não tendo muito estômago para ambientes fúnebres. Especialmente o cheiro me incomoda, uma mistura de perfumes, vela, de um corpo humano entrando em estado de putrefação. Entendo que, para os parentes, não é bem assim que as coisas soam.

Mas cá estou, numa cidade onde nada acontece, tendo diante de mim um cortejo em direção ao cemitério, acompanhada pela banda municipal. Uma vez em Roma, aja como um.

Pus uma blusa clara, calça, tênis. Apenas desodorante, nada de perfume. Segui o cortejo sempre tendo como norte a figura de Renatinho. Sério, mas não triste, ele marcava com precisão o ritmo, mesmo quando havia paradas, e retornava sempre exato. Não sei como ocorreu a ideia de deixá-lo fazer parte da banda, uma vez que o ingresso era por meio de concurso público e nosso amigo não teria condições de realizar uma prova dessas.

Instrumento por instrumento ia silenciando quando atravessava o portão de entrada do cemitério, de modo que o som dos pratos de Renatinho encerrou triunfalmente o cortejo. À medida que o cortejo se aproximava do local exato do sepultamento, mais e mais o choro, a revolta, a indignação se faziam ouvir vindo da multidão, que já somava umas cinquenta pessoas.

A banda se posicionou ao lado direito do túmulo, instrumentos abaixados em sinal de respeito. O padre encomenda o corpo. E aquela sensação estranha de que uma represa estava prestes a romper. Só crescia. E de fato aconteceu.

Foi quando o caixão começou a ser baixado e a banda executou pela última vez a marcha fúnebre. O esposo, com a filha ainda no colo, tinha a cara inchada e vermelha, era ele que estava prestes a explodir, como de fato explodiu.

Uma vez que o caixão já estava no fundo da cova, o homem, num grito de bicho doído, ainda com a criança nos braços, sacou uma pistola e deu uns três tiros para cima. Crianças chorando, adultos correndo entre os túmulos, idosos tentando buscar auxílio debaixo das árvores. Lembro que corri até um pé de caju e ali me escondi.

A banda largara ali mesmo os instrumentos e dera no pé. Só o saxofonista que levou consigo seu instrumento. Além do estampido dos tiros, o barulho de orquestra se despedaçando era a trilha sonora do desfecho.

Renatinho largou os pratos no chão e correu desgovernado. Na pressa, tropeça numa cruz de cimento pregada em um túmulo mais humilde. Ralou joelho, cotovelo e ficou todo cheio de areia. Na mesma hora, Renatinho chegara à conclusão que não há mais aquela paz toda no cemitério, decidiu abdicar de seu gosto e ficar apenas tocando na bandinha da cidade.

E no meio do turbilhão, eu havia lembrado, afinal de contas, a música da dor de dente.

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