Gotas de tempo puro
Aqui no pé-de-serra chove pouco. E é o vento forte o seu prenúncio. Todas as janelas rangem, as portas batem, as folhas secas das ruas entram pela varanda. Vem a chuva. Cai forte no calçamento quente e seco. Mormaço. Cheiro de chuva.
Os primeiros minutos são insuportáveis. Uma sensação de bafo infernal enquanto a água da chuva não encharca de vez o calçamento seco. Depois, o som das biqueiras produzindo água.
“Anda, menino! Pega os balde, as bacia, o roupeiro.”
Uma água que é de graça! pensa o menino. Bate na telha, vem rolando, rolando até fazer zoada no plástico do roupeiro. Mas os primeiros minutos de chuva produzem uma água turva, barrenta. E tem poeira no céu? pensou em voz alta o menino.
“Só pensa o que não é pra pensar. Tira logo essa roupa, pega o sabonete e já adiante o banho de mais tarde!”
O menino pede para tomar banho de cueca. O vácuo de resposta da mãe quer dizer sim, ele pressente. Espera a água barrenta descer, sujeira das telhas ressequidas, e se joga debaixo da biqueira. Ri à toa. Pega um punhado de água na mão e pensa consigo que a água da chuva é mais leve que a da rua.
Lá de dentro a mãe do menino desliga todos os aparelhos da tomada. Sabe que dentro de poucos minutos haverá queda de energia. Calça sandália por precaução.
“Tu levou a toalha pra se secar?”
O vácuo de resposta do menino deve querer dizer não, ela pressente. Irritada, traz a toalha até ele, mas não sem antes perguntar onde ele esquecera o juízo.
Para o interiorano, a chuva tem essa capacidade catártica de renovar a fé no dia de amanhã. É um botão que, quando acionado, desencadeia uma enxurrada de sensações e atitudes quase eufóricas.
A chuva vai deixar a cidade toda nova em folha. Amanhã, as ruas parecerão mais bonitas, uma vez que o lixo some de nossos olhos, pois levado até o curso dos rios às partes mais baixas da cidade.
Os ânimos revigorados fazem o sujeito conceder até um prazo maior para a quitação daquela dívida, aquela que se arrastou por todo o verão. E até os políticos merecerão um julgamento mais leve.
Para alguns, enquanto tomam vinho no quintal, a chuva é pura memória e seu fluxo, gotas de tempo puro.
A chuva leva tudo. Não sobra nada do que se lamentar.