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Cigarro aceso


A gente ficava no coreto da praça contando piada cheia de palavra suja, de vizinho pego na traição, sexo e assombração até que a rua fosse esvaziando. E o indicio mais forte de todos era quando o pipoqueiro apagava o lampião que mantinha a pipoca quentinha.

Era hora. Alguém era destacado para ir até a casa do Acrísio para saber se ia dar certo mesmo hoje à noite.

“Acrísiou! Acrísiou! Acrisiou!”

“Grita não que a mãe tem o sono bem levim.”

“E aí, deu certo lá o negócio?”

“Deu, deu, deu.”

A essa hora, a rua perdia toda a graça. Todas as meninas já estavam recolhidas em casa, não porque quisessem, mas sim por ordens superiores. Não tinha menina bonita de saia curta se exibindo para os meninos mais velhos, nem a pivetada para a gente mangar. Nem os mais velhos para pedir bebida escondido.

Ao som de Roberto Carlos, a rádio da praça anunciava que a noite já era.

O bando se desfazia, mas com a promessa de que em meia hora todos estariam na esquina da danceteria, debaixo da marquise, e que ninguém esquecesse o dinheiro porque o Acrísio já tinha comprado o negócio lá. Quem esquecesse ia levar três chulipas de cada um.

“Combinado, né?”

Dai todo o bando se reunia debaixo da marquise, nem tristes, nem felizes, mas sim como se estivéssemos diante de um verdadeiro rito. A prática consistia em arrumar um jeito de comprar uma carteira de cigarros, de preferência Derby vermelho, dar um jeito de engabelar os pais e aparecer no local marcado até meia-noite.

Cada um tinha sua estratégia. Tinha quem pulasse o muro do quintal com a ajuda de uma escada ali posicionada pouco antes de sair para a praça. Era comum chegarem à praça os adeptos de tal método com os fundos das calças ou a parte detrás da camisa sujas de poeira.

Mas outros, como o Acrísio, preferiam métodos mais limpos e sofisticados. Diziam às mães que iam comprar “cafona” na casa da dona Noca e lhe fazer companhia, pois ela era muito sozinha. O que não era de todo mentira, pois dona Noca de fato vendia din-dins e era uma pessoa solitária. Acontecia que a pobre mulher dormia na cadeira de balanço e o Acrísio metia o pé no sentido da praça.

Mas nessa noite ele não lançara mão de tal estratagema. Pelo rodizio, era vez dele de comprar a

carteira de cigarros. E assim o fez. Então deu meia-noite e estávamos todos lá.

“Cadê, Acrísio?”

“Tá aqui.”

Diz ele batendo no bolso. Então seguimos para o mercado central. Todas as bodegas, os mercantis, as lojas de ferragens e as boutiques estavam fechadas. Nenhuma cadeira nas calçadas, ninguém passando de bicicleta ou de carro. Só o vigia do mercado, o Mané Alves.

Era tudo muito sincronizado e à meia-noite e cinco estávamos sentados no paralelepípedo da calçada, perto da entrada do mercado. Mané Alves puxava a cadeira com o encosto virado para frente, afastava o cassetete para o lado e acenava com a cabeça em nossa direção.

Lentamente, íamos deslizando no paralelepípedo até ficarmos de frente para ele. Era quando Acrísio, bem do meio da turma, deslizava a carteira de cigarros pela calçada que ia parar debaixo da cadeira do vigia. Olhando ao redor, sem pressa, ele estica o braço e põe a carteira no bolso da camisa.

Passado o momento mais tenso, voltávamos a agir normalmente.

“E aí, Mané Alves, tudo bom, né?”

“Tudo.”

“E com vocês?”

“T-t-t-t-u-u-u-u-d-d-d-d-o-o-o-o.”

Mané Alves abria a carteira saboreando cada lacre rompido, cada plástico ou papel que envolvia os cigarros. Puxou um, levou à boca, acendeu e deu uma senhora baforada.

“Vocês num sabem o que eu vi onti. Um dragão. Sim, senhor! Um dragão aqui mesmo em cima do mercado. Era todo preto com os ói vermêi, umas asa deste tamanho que quando abria ficava quase do tamanho do quarteirão. Mentira? Tu num me conhece não? Só conto verdade, menino. Pois esse dragão num queria partir pra riba deu!? Ele balançava as asa dele, ficava que nem a pessoa puxando ar, mas era pra cuspir fogo, e eu só me escondendo. Num tive medo não, lembrei de um esconjuro que minha mãezinha falecida me ensinou e mandei pra cima dele que o bicho foi se amofinando, amofinando e virou do tamanho de um pardal. E foi embora como quem sai com o rabo entre as perna.”

Mané Alves joga a guimba no meio da rua e puxa mais um cigarro.

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