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Mais leve que o ar


Dois copos de leite diariamente. Um pela manhã e outro à tardinha, lá pelas cinco da tarde. Os copos com leite ficavam sobre a bancada da cozinha cobertos por um pano de prato branco, ambos devidamente já adoçados. Depois de muita reivindicações, eu e meu irmão conseguimos a inclusão de uma mísera colher de achocolatado. Havia ali a crença por parte de minha mãe de que essa quantidade de leite nos asseguraria dentes brancos e fortes.

Disse que era diariamente, mas havia uma exceção. Aos domingos alguns luxos nos eram permitidos. Almoçar bebendo refrigerante, comer fritura, fazer sanduíche misto e beber mais refrigerante à tarde, no espaço entre o almoço e o jantar. À noite sempre tinha uma sopa de frango, da que eu só viria a gostar já adulto. Mas aos domingos não se jantava em casa, era o dia de descanso de minha mãe na cozinha, ela dizia.Era quando íamos jantar fora. A coisa toda era resolvida de forma muito monocrática. Meu pai dizia:

“Tomem banho e se arrumem que nós vamos comer no...”.

Eu não entendia por que o nome da pizzaria era Só o mie. Quando criança, tinha prazer em elaborar teorias sobre qualquer coisa cujo sentido me escapasse. Então, eu me perguntava constantemente o significado da Ltda, que eu enxergava nas placas de lojas, por exemplo, o que era uma planta de uma casa, como e por que uma nota de cinquenta valia mais do que quarenta e nove notas de um.

Desde criança fora ensinado sobre o quanto o mundo pode, deve ser e é hostil, e que as coisas simplesmente não estão nunca ao nosso favor. Que deveríamos nos lançar em busca de tudo nessa vida. “Nunca dependa de ninguém”, foi talvez a frase mais pronunciada por meus pais quando éramos crianças a titulo de ensinamento para a vida adulta. Logo, antes de abrir a boca e perguntar o que quer que fosse, eu primeiro elaborava minhas teorias.

Às vezes, elas eram muito melhores do que a explicação dos adultos. Assim como, às vezes, as explicações dos adultos eram extremamente elucidativas. Foi nesse meio-termo que eu entendi que a imaginação tem a leveza não da pena, mas sim a da asa.

O meu mais novo desafio intelectual consistia em tentar elucidar o sentido do nome da pizzaria para onde íamos naquele, e em outros, domingos. Só o mie. Era o mie que estava só em algum lugar, mie era o nome do dono, mie era um gato, quer dizer, o dono fez uma homenagem para o gato de estimação?

Mesmo sendo uma pizzaria, nesse dia comemos o famoso pastelão, que nada mais era do que um pastel gorduroso com uma grossa fatia de queijo com uma fina fatia de presunto. Para beber, um refrigerante. Nunca fomos uma família muito falante, daquelas que gritam uns por cima dos outros nos jantares. Falava-se o necessário.

Junto com o pastelão vinha um molho rose num copinho descartável , sobre o qual, tempos depois, eu viria a ser informado consistir na mistura de ketchup e maionese. Eventualmente, caia sempre um pouco de molho em minha blusa, no tênis. Momento propício para que meus pais começassem a preencher o silêncio da mesa com reclamações e lamentações sobre o quanto eu e meu irmão sempre nos sujávamos quando íamos comer fora.

Há um fato que não contei antes. No caminho para a pizzaria, meu pai dirigia o carro, era obrigatório passar por uma rua bem estreita. Nessa rua tinha algumas casas bem antigas e desocupadas, mas uma estava com a porta aberta. Dava para ouvir o barulho de pessoas falando em voz alta e uma luz branca vindo do seu interior.

Bem em frente à casa tinha uma lombada que obrigava os motoristas a passarem lentamente. E assim fez meu pai, passando mais lentamente ainda, como era de costume devido ao seu hábito de constante precaução frente a tudo.

Jamais seria capaz de lembrar quanto durou aquele momento, mas a lógica me diz que não deve ter passado de uns poucos segundos. Dois ou três. No entanto, sou capaz de recuperar as imagens e a sensação da mais absoluta inteligibilidade do que vira.

De dentro do carro, no banco detrás do Del Rey azul marinho de meu pai, pude ver que na casa de onde emanava a luz branca havia pessoas de pé batendo com o punho fechado no próprio peito, outras ajoelhadas rezando de olhos fechados. Alguns homens usavam chapéu de palha, e as mulheres, vestido branco ou com estampa floral. Estavam em fileiras, eram duas ou três e entre cada fileira havia bancos de madeira, similares aos que encontramos no interior de igrejas.

Aqueles bancos, durante os dois ou três segundos em pude observar a casa do interior do Dey Rey de meu pai, aqueles bancos estavam flutuando no ar como balões cheios de gás hélio. Aquelas pessoas sentadas e em pé, rezando, de olhos fechados, batendo com o punho fechado no próprio peito, eram elas que estavam fazendo os bancos levitarem.

Passados os dois ou três segundos, eu, no auge de minha timidez, me vi no embate de perguntar ou não aos meus pais e irmão se eles também tinham visto aquilo. Mas acabei me dando o direito de não perguntar, de não comentar, de não tornar aquilo um assunto.

Quando enfim chegamos ao Só o mie, eu não sabia se o silêncio que se instaurou em nossa mesa era devido a alguma discussão que meus pais haviam tido antes de sairmos de casa, ou se estavam todos tão resolutamente impactados quanto eu. Impactados e silenciosos frente a uma cena inexplicável. O molho rose derramado na blusa e tênis talvez tenha sido o que nos tirou daquele mutismo trágico.

olho rose derramado na blusa e tênis talvez tenha sido o que nos tirou daquele mutismo trágico.

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