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Folhas secas


É o mesmo ritual toda quinta à tardinha.

Dona Amália puxa sua cadeira de plástico cor laranja até a calçada. Devido ao desnível, uma leve inclinação em direção à rua, acalca a cadeira no chão até arrumar uma posição segura. Tira do bolso do vestido largo e florido um paninho para limpar os braços e assento da cadeira. Dona Amália não suporta sujeira. Volta o pano ao bolso.

Senta-se de frente para o canteiro central de onde pode ficar observando as duas castanholeiras enormes ali. O olhar de dona Amália fica na vaguidão do espaço, apesar de não serem necessários mais do que uns doze passos para se chegar até o canteiro com as castanholeiras, ambos enormes.

Dona Amália não conhece a palavra “nostalgia”. Nunca chegou a se ausentar de seu Estado sequer, o máximo que fez foi passar finais de semana em cidades vizinhas à sua. É um parente que morre, um neto que nasce, uma visitinha à irmã que não vê há anos. Mas a palavra “nostalgia” lhe cabe bem para fins de descrição, pois já não vive no tempo presente, apenas rememora.

Esse seu olhar apático lembra muito o do gado no pasto, que ela tanto viu os irmãos tangerem em sua infância. Olha e percebe tudo, mas não está a fim de nada. Tanto faz que a vida passe ou esteja passando; apenas alertas a instintos básicos, como o de sobrevivência, podem despertar da letargia.

Passa a ensurdecedora moto sem cano da descarga, carro anunciando que é a hora da mudança, vote certo, com consciência, mas é mesmo que nada. Seu olhar está longe, num tempo distante e muito difícil de ser localizado por quem observe suas feições. Não chega a ser frio ou insensível, mas certamente é um olhar desprendido do que se encontra ao redor.

As castanholeiras à sua frente foram plantadas quando ainda era pequena. Fora ela mesmo que abriu um buraco no barro úmido e depositou o caroço. Nesse dia, tinha enchido o bucho de tanta castanhola que comera, então o pai lhe disse para fazer algo de útil e plantar duas ali no terreiro, que era para ver se vingavam um dia. Assim fez.

A menina ia todo santo dia verificar o status da castanholeira e nada. Demorava a crescer, brigou o pai, e vá arrumar o que fazer até lá! Mas aquela vontade de ver a planta sair do chão ia crescendo na menina. Ela aproveitava quando o pai mandava buscar umas folhas de boldo, ou qualquer outra coisa, na casa do vizinho e dava uma espiada no terreiro, até que um broto começou a sair do chão.

Testemunhar assim o nascimento de uma planta, um bicho é como ver um desafio ao improvável sendo vencido. Ver algo se transformar em outra coisa, diante dos olhos, é o que apaga e reacende a nossa percepção de que estamos vivos, de verdade.

Mas antes de puxar sua cadeira de plástico cor laranja até a calçada, dona Amália havia juntado uns galhos secos do pé de laranja dando-lhes a feição de uma vassoura. Segurando a vassoura improvisada pelo cabo, barria todo o canteiro, fazendo mais adiante um pequeno monte de folhas, a maioria seca e umas poucas alaranjadas. As secas iam por cima e o restante, por baixo.

Tira do outro bolso do vestido florido uma caixa de fósforos, acende e solta no montinho de folhas. Retorna toda curvada para sua cadeira de plástico cor laranja. Ajeita o vestido e deixa a vassoura improvisada ao lado.

Dona Amália gosta de ver o fogo crescendo e esturricando as folhas secas. Faz um som que lhe acalma, além do cheiro de folha queimada que lembra o fumo, recém cortado pelo médico, pois já não tinha idade para isso.

E ali fica, contemplando o fogo ardendo, transformando vida já morta em cinzas, enchendo a rua já calorenta com uma fumaça esbranquiçada no finzinho da tarde. E o olhar de dona Amália nem liga para a vizinhança reclamando da fumaça, do cheiro, das doenças respiratórias. Ela só tem olhos para o fogo queimando as folhas.

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